Os- peitos- e- a- fumaça
- Jerusa Furbino

- 17 de out. de 2024
- 6 min de leitura

Os- peitos- e- a- fumaça
Sempre gostei de observar Roberto à janela. Achava reconfortante a maneira como ele se perdia nos pensamentos enquanto acendia mais um cigarro. O movimento gracioso de suas mãos, a dança sutil da fumaça que se dissipava no ar, tudo isso tinha um certo encanto aos meus olhos. Eu via naquelas pausas para fumar uma espécie de ritual sagrado, um momento de introspecção que ele valorizava tanto.
Mesmo não sendo fumante, nunca me incomodei com a fumaça. Foi justamente isso que me atraiu para Roberto. Era uma atração sem sentido, uma vez que a maioria das pessoas não fumantes odeiam o cheiro e a fumaça de cigarro, mas eu não. Eu era viciada naquele cheiro que Roberto trazia em suas roupas, em sua boca, em seus cabelos. Era um odor único, uma fragrância que só ele tinha.
Cada vez que ele acendia um cigarro, era como se uma parte dele se revelasse para mim. Sua expressão tranquila, os olhos perdidos no horizonte, o pequeno sorriso nos lábios enquanto soltava a fumaça para o alto. Tudo isso me fazia sentir próxima dele, como se estivéssemos compartilhando um momento íntimo, mesmo estando separados pela janela.
Aquela fumaça era mais do que apenas um subproduto do hábito de Roberto; era um elo invisível que nos ligava, uma conexão silenciosa que apenas nós dois entendíamos. E eu sabia, mesmo naqueles momentos de contemplação solitária, ele estava lá, presente, comigo, através da fumaça que preenchia o ar entre nós.
No entanto, tudo mudou em uma tarde comum, quando, distraída, olhei na direção do apartamento vizinho e notei algo incomum. Os olhos de Roberto, normalmente perdidos no horizonte distante, estavam fixos em algo mais próximo. E foi então que percebi a verdade por trás daquele hábito aparentemente inofensivo.
Os seios fartos da vizinha do prédio ao lado desfilavam pela janela, desafiando qualquer vestígio de privacidade. Meu coração apertou ao compreender que o objeto do fascínio de Roberto não era a fumaça que se dispersava, mas sim a visão provocante da mulher alheia. Uma mistura de choque e traição me envolveu enquanto eu testemunhava a traição silenciosa de meu próprio marido, usando o fumo como subterfúgio para alimentar sua lascívia.
Tentei manter uma leveza no momento, mesmo sentindo-me traída pela descoberta, optando por quebrar o gelo com uma pitada de humor.
"Uau, Roberto, o que é isso? Você finalmente descobriu os seios fartos da nossa vizinha?" Eu disse, forçando um tom de brincadeira, embora meu coração ainda estivesse pesado com a traição que testemunhara. "Eu tenho observado essa vizinha há alguns meses, e você? Já tinha notado toda essa... liberdade há mais tempo?"
Vi a surpresa nos olhos de Roberto diante da minha abordagem inesperada. Ele esboçou um sorriso nervoso, tentando disfarçar a tensão que pairava no ar. "Ah, você sabe como é, Beatriz. Nunca reparei muito... Eu... bem, só estava apreciando a vista da cidade, você sabe."
"Tudo bem, eu confio em você", respondi, tentando dissipar qualquer desconforto que pudesse pairar entre nós. "Claro que sei que você só gosta de apreciar a vista, por isso estou te perguntando. Não sou ciumenta, você se esqueceu?"
Roberto olhou para mim com uma expressão mista de alívio e gratidão. "Você é incrível, Beatriz. Você é o único amor da minha vida", disse ele sinceramente, buscando me reconfortar. "Os seios da moça podem ser bonitos, mas nada se compara aos seus. Você é minha prioridade, sempre."
Um sorriso trêmulo se formou em meus lábios enquanto absorvia suas palavras reconfortantes. Apesar do abalo causado pela descoberta anterior, uma centelha de esperança começou a se acender em meu peito.
Decidi deixar o tempo passar, observando atentamente o comportamento de Roberto ao fumar e os movimentos da vizinha nas próximas semanas. Para minha surpresa, descobri que a vizinha tinha vários parceiros, diferentes homens frequentavam sua casa regularmente.
Inclusive, levantei a suspeita de que ela pudesse estar envolvida em atividades profissionais duvidosas, dada a rotatividade dos homens que a visitavam.
Ao compartilhar minhas suspeitas com Roberto, ele riu e disse que eu estava sendo preconceituosa, depois completou sua fala de forma literal: "Putas não cozinham para seus clientes!"
A frase proferida por Roberto atingiu-me como um soco no estômago. Eu o encarei, sem acreditar no que acabara de ouvir. "Quem está sendo preconceituoso agora é você", respondi, tentando controlar a raiva em minha voz. "De onde você tirou essa afirmação de que putas não cozinham para seus parceiros? Isso é um pouco estereotipado, não acha?"
A fala de Roberto abriu um fluxo de pensamento, repleto de conflitos. Eu já não sabia mais o que argumentar. E se a vizinha fosse uma profissional do sexo, o que eu tinha com isso?
Neste casamento de 13 anos com Roberto, onde o desejo havia se esvaído, era a rotina que atravessava nossos corpos e desejos, esfacelando as promessas de amor eterno. A vizinha estava certa em trocar de parceiro como quem troca o sutiã, ou melhor, ela nem usava muito sutiã. Ela era livre, e eu era o quê? Indagava-me enquanto as dúvidas se acumulavam em minha mente.
A vida naquele instante pareceu congelar, como se o tempo decidisse dar uma pausa para que eu pudesse refletir sobre a dinâmica do meu casamento. São nesses momentos que me vejo imóvel, parada no tempo, enquanto observo os pequenos gestos, como a fumaça do cigarro de Roberto se dissipando no ar.
Estou paralisada. A frase de Roberto sobre putas não cozinharem para seus parceiros martelava em minha cabeça. Eu, que sempre tive discursos feministas, eu que mesmo assim, sempre cozinhei para Roberto e o nosso filho, João Roberto, esses nomes feitos de homenagem, João era meu pai, Roberto meu grande e eterno amor, como imaginava até aquele momento.
Trabalho fora, mas cozinho dentro como sempre fez minha mãe, que nunca trabalhou fora, e agora descubro que as putas não cozinham para seus homens! Eu queria ser puta! Era isso, era esse o pensamento que veio como uma avalanche.
Confronto a ideia de perda. Relembro momentos felizes do passado, contrastando-os com a sensação de vazio que começou a permear nosso relacionamento. Talvez seja a perda da paixão inicial, da conexão profunda, ou simplesmente a perda daquilo que nós costumávamos ser.
Da paralisante ideia de me tornar alegoricamente uma puta, passo a contextualizar a perda desse casamento, da nossa história, da mesmice do dia a dia. Cuidar de casa, do marido, do filho, trabalhar fora, trabalhar dentro. Esse padrão preso à estrutura patriarcal... Quem eu queria agradar? Será que eu era feliz? Até onde vale a pena continuar nesse casamento feito de pouco afeto e quase nenhuma carícia? Nem me lembro qual foi o último dia em que transamos e em que eu gozei de verdade.
É evidente o desencontro entre nós. Ele se satisfazendo com sua fumaça e os peitos da vizinha, e eu aqui, sendo uma espectadora dos desejos alheios do marido que já não recaem sobre mim. Dizem que onde há fumaça, há fogo. No caso da minha vida, a fumaça levou aos peitos, que me levaram à revelação do inevitável, do já anunciado prólogo do fim. Eu não queria ver, mas foram os peitos da vizinha que descortinaram a nuvem de fumaça que já se formava há tanto tempo.
Faço todo o fluxo de pensamentos sobre o divórcio, examinando cada aspecto com precisão cirúrgica. Primeiro, penso na guarda do nosso filho, João Roberto. Imagino os momentos em que ele estará comigo e os momentos em que estará com o pai. Pondero sobre como isso afetará sua rotina, seus estudos, suas atividades extracurriculares. O coração se aperta ao considerar que, mesmo desejando o divórcio, não posso evitar a dor que João também sentirá com a nossa separação.
As visitas também ocupam meus pensamentos. Como será a dinâmica dos encontros entre João e Roberto? Será que conseguirão manter uma relação saudável, apesar da separação? Me vejo planejando cada detalhe das visitas, imaginando momentos felizes entre pai e filho, mas também temendo os conflitos que podem surgir.
A questão da pensão também é uma preocupação presente. Calculo mentalmente as despesas necessárias para cuidar de João e manter nosso padrão de vida. Me pergunto se Roberto estará disposto a contribuir financeiramente de maneira justa, garantindo o bem-estar do nosso filho.
Com tudo resolvido em minha cabeça, sinto uma mistura de alívio e apreensão. Decido chamar Roberto para conversar, enquanto ele ainda soprava a fumaça do cigarro que ele acabara de apagar no velho cinzeiro prata que ganhamos de casamento. “Roberto, nós precisamos conversar."




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