Ele me disse não
- Jerusa Furbino

- 10 de mar.
- 9 min de leitura
Atualizado: 2 de abr.

— Boa tarde, Clarice, em que posso ajudá-la?
Eu estava ali, pela primeira vez. Ela me olhava com atenção; a pergunta parecia realmente sincera. Ela estava ali, sentada em sua poltrona, de frente para mim, que me acomodava no sofá confortável de cor bordô. Entre nós, uma pequena mesa de apoio com uma caixa de lenços de papel, um caderno de anotações virado para o lado dela e um vaso de violetas rosas.
O silêncio após a pergunta começava a fazer eco na sala e dentro da minha cabeça. Será que ela poderia me ajudar?
Eu não sabia se poderia confiar nela para despejar desejos e segredos que meu marido não iria gostar de ouvir. Talvez ela estivesse de conluio com ele, visto que foi indicação dele. Aliás, estou aqui, sentada nesse sofá, de frente para essa mulher que aguarda minhas respostas, por causa dele. Faz dois anos que nosso filho nasceu, e, em vez de eu estar radiante, venho definhando a cada dia que passa.
Não sei se é saudade de uma das pessoas que eu costumava ser e que agora nenhuma delas pode estar aqui nessa sala ou se os choros me perturbaram tanto o juízo que vivo escutando os seus sons agudos, até mesmo quando ele, o meu filho, dorme como um anjo com seus cachinhos dourados, podendo ouvir apenas o barulhinho da chupeta sendo sugada, enquanto ele sonha em ser alimentado por meus seios, que, inclusive, já os vejo murchos e sem vida ao final dessa jornada que todos dizem ser sagrada.
Estou em silêncio há mais ou menos cinco minutos. Enquanto isso, vejo um pequeno incômodo nela, que aguarda ansiosa para que eu despeje minhas dores nesse sofá. Já percebo que ela começa a me observar. Ela olha para os meus sapatos. Repara que são de uma marca que ela nunca vai poder comprar, ou talvez nem saiba que eles custam o valor de pelo menos trinta sessões.
Mas o que estou fazendo? Ela só quer uma resposta. Ela quer me ajudar, coitada. Como alguém como ela, que nunca viveu ou imaginou viver o que já vivi, pode ter a ousadia de querer me ajudar? Ela não liga para os meus sapatos caros. Nem eu ando ligando muito para eles ultimamente.
Antes, eu fazia questão de exibi-los por aí, principalmente naquelas lojas que, antes de eu chegar aonde estou agora, faziam cara de desprezo quando me viam perguntar o preço das coisas. Agora, as vendedoras até me disputam a tapas quando me veem chegar. A comissão é sempre gorda e farta, igual à minha tia Joaquina, que pesa 155 quilos e desfila sua gordura pelas festas de família, rindo como se fosse realmente feliz. Eu não acredito nisso. Nem acredito que essa mulher, sentada nessa poltrona à minha frente, possa me ajudar.
— Clarice.
Ela fala o meu nome, interrompendo meus pensamentos sobre confiar ou não nela para começar a falar.
— Clarice, se não está preparada para iniciar sua sessão por meio da expressão da fala terapêutica neste momento, posso remarcar para outro dia ou podemos ficar aqui em silêncio durante o tempo que for necessário para você. Eu não tenho pressa, mas quero que compreenda que qualquer intervenção minha só poderá acontecer se houver colaboração da sua parte.
Eu continuei em silêncio. E se eu não quiser colaborar? Aliás, colaborar com ela para quê? Nada daquilo faz sentido.
Para quê vou dizer para ela que, antes de calçar esses sapatos caros, ter um marido que me agrada com joias e um cartão sem limite, eu era enfermeira, formada pela UFMG? Vinda do interior de uma cidadezinha de merda, fui a primeira da minha família a me formar. Tá certo que eles me queriam médica, mas eu não consegui passar no vestibular de Medicina. Também, com aquele ensino de merda da cidade de merda, tendo que ajudar a plantar e colher milho no sítio de merda onde eu vivia, quem conseguiria passar para Medicina?
Mas, enfim, passei para Enfermagem, me formei e virei o orgulho da família. Finalmente, nunca mais precisaria plantar e colher milho nem fazer todas as transformações do milho: mingau, pamonha, broa, bolo, curau — todas essas baboseiras que os turistas gostam de comprar de gente como eu era, antes de calçar esses sapatos caros.
Ainda na faculdade, enquanto fazia estágios, conheci Simone. Ela era enfermeira chefe de um dos hospitais em que eu estagiava. Mas ela não era igual às outras enfermeiras — não pelo fato de ser chefe, mas porque havia algo diferente nela.
Ela era bonita. Muito bonita. Chamava atenção. Vestia roupas caras. Mesmo sendo enfermeira chefe, havia algo estranho ali. Uma vez, apareceu com uma bolsa da Chanel. Nem as médicas usavam bolsa da Chanel. E eu sabia que aquela bolsa não era falsificada, iguais às que eu costumava usar. Aquela bolsa era legítima.
Um dia, tomei coragem e perguntei se ela tinha ganhado ou comprado aquela bolsa. Em um primeiro momento, vi que ela ficou incomodada com minha pergunta invasiva, mas logo percebeu que meus olhos queriam ter acesso ao que ela tinha.
— Você quer mesmo saber? — perguntou, olhando bem dentro dos meus olhos. — Você é bem bonita. Talvez consiga comprar uma dessas logo.
Sem rodeios, me disse que ser enfermeira era trabalho de fachada para a família, que o que fazia ela crescer na vida era ser acompanhante de luxo.
Sem pensar no que era certo ou errado, perguntei como fazia para me tornar uma acompanhante de luxo também.
Ela riu do meu jeito afobado de querer ser igual a ela, mas me explicou tudo. Passou o contato da agência dela e, no mesmo dia, marquei uma entrevista com Douglas, meu agente e o responsável por hoje eu estar aqui, calçando esses sapatos caros, enquanto essa mulher quer me ajudar — tudo por causa do meu marido, que cismou que eu não sou mais a mesma.
Mas quem é a mesma depois de parir um filho e virar uma vaca leiteira?
Em pouco tempo, já tinha uma cartela de clientes que faziam questão de sair comigo. Logo comecei a enviar dinheiro para minha família, que ainda vive no sítio — agora todo reformado e com piscina, graças ao meu marido. Ninguém mais planta e colhe milho. Hoje, eles têm um pequeno supermercado na cidade. Eu os fiz prosperar. Não ia deixá-los na merda enquanto eu nadava na minha piscina indoor no prédio mais chique do Belvedere.
Eu sou uma ótima filha.
Só a tia Joaquina, a gorda, não quis saber de trabalhar no supermercado. Ela continua a catar ovos da Judith, a galinha de estimação. Fica lá, encostada nas costas dos meus pais, sem fazer nada. Diz que fez muito pelo meu pai quando ele era criança, que foi uma mãe para ele e que agora ele tem que retribuir, visto que a filha dele — no caso, eu — sou rica e não custa nada cuidar dela. Isso não seria um peso para ela. Mas ela, em si, já era um peso para todos.
Mas fazer o quê? Não iríamos colocar a tia Joaquina para fora. O que uma pessoa com 155 quilos, que não levanta do sofá nem para comer, poderia fazer para mudar de vida? Então, ninguém mexe com o sossego dela, mesmo ela não dando sossego para ninguém.
Eu continuo calada. Agora, olho para a janela. Vejo que há uma cortina até bonita tampando o pôr do sol que acontece naquele momento. Ela segue meu olhar.
— Você gosta de assistir ao pôr do sol?
Mais uma vez, ela interrompe meus pensamentos, mas agora com uma pergunta idiota dessas.
Se eu gosto de assistir ao pôr do sol? Como ela acha que vai me ajudar com uma pergunta blasé dessas? É a mesma coisa de entrar com alguém no elevador e dizer que lá fora está calor, que a chuva está demorando para aparecer. Essas conversas bestas que as pessoas inventam só para preencher o insuportável silêncio entre desconhecidos enquanto sobem andares juntos.
Eu sempre odiei conversas de elevador. Por que não se pode simplesmente ficar calado?
Agora acontece de novo. A mulher da poltrona não está suportando o silêncio que começa a gritar nessa sala e está inventando perguntas aleatórias. Eu me recuso a abrir a boca para responder uma pergunta sem sentido dessas.
Volto para mim novamente depois de ser interrompida.
Era pôr do sol quando conheci Pedro pela primeira vez. Saí de casa apressada, atrasada para meu encontro com um novo cliente. Entrei no carro de Pedro meio agitada, lembrei que não havia passado meu perfume e perguntei se poderia usá-lo ali, dentro do carro.
Para minha surpresa, ele disse um curto e enfático:
— Não.
Não! Como assim não? Perguntei com ar de contrariedade, argumentando que era perfume bom, perfume caro. Ele não quis saber dos meus argumentos e disse que não aceitava nenhum perfume no carro dele, mesmo sendo um perfume que eu achava que era bom.
Ele disse que não gostava de perfume nenhum. Falou que era alérgico.
Naquele momento, resolvi olhar para os braços de quem me transportava até meu job. Vi que eram braços fortes, tatuados. Ele era bonito também. E, o mais importante, tinha firmeza em suas palavras.
Naquela hora, perguntei se poderia ser meu motorista particular para quando eu precisasse. Expliquei que fazia programas, que às vezes saía tarde do trabalho e que era difícil e inseguro retornar para casa. Ele disse que, pagando bem, poderia sim. Passou-me seu cartão e, assim, desde aquele pôr do sol, sempre que eu precisava de um motorista para me levar ou buscar em algum job, eu ligava para ele.
Depois de mais ou menos seis meses desde o dia em que ele me disse não pela primeira vez, sobre o perfume, na volta para casa, eu já estava me sentando no banco da frente. Me achava íntima dele já. Coloquei minhas mãos nas pernas dele e perguntei se queria dormir comigo. Ele me disse:
— Não. Não gosto de comer putas, me desculpe.
Fiquei assustada com a sinceridade e ousadia de dizer que eu era puta, bem ali, na minha cara. Mas eu disse que, para ele, eu não cobraria, que faria de graça.
Ele continuou a dizer que não, que não queria dormir comigo, que não se sentia bem com aquela proposta. Que ele estava apenas fazendo o trabalho dele, que era me levar ou buscar em segurança.
Saí do carro igual uma menina birrenta contrariada, batendo a porta e prometendo que nunca mais ligaria para ele. Ele simplesmente disse um seco e sonoro:
— Tudo bem.
Assim, sem reticências, sem rodeios, um rosto calmo que sabia sempre o que realmente queria.
Duas semanas depois, liguei para Pedro para combinar um novo serviço de transporte. Achei que ele iria comentar alguma coisa sobre nosso último encontro, mas ele permaneceu calado durante todo o trajeto, enquanto me levava para encontrar o homem que seria meu atual marido.
Conheci Carlos Augusto naquela noite. Ele é um minerador rico e bem-sucedido. O homem mais incrível que conheci em toda a minha vida. Desde o dia em que nos encontramos pela primeira vez, ele disse que eu não seria de mais ninguém. Que eu seria a mulher dele. Disse que sentiu algo que nunca havia sentido com mais ninguém. Naquela mesma noite, pagou minha exclusividade por um mês, para que eu pudesse conhecê-lo melhor. Carlos Augusto me arrumou até um novo motorista, que ficava por conta de mim o tempo inteiro.
Eu estava gostando da fase princesa que começava a viver. Mas um dia dispensei o motorista de Carlos Augusto e liguei para Pedro para que ele me levasse a um destino mais longo. Na realidade, inventei o destino. Falei que precisava ir até Betim para resolver algumas coisas.
Pedro chegou na hora marcada. Sentei-me atrás, mas o tempo todo eu o provocava pelo retrovisor. Eu fui sem calcinha. Eu queria transar com ele. Coloquei um decote grande nos seios. Uma hora, comecei a passar as mãos nos meus seios e deixei que ele visse pelo retrovisor. Vi que ele estava ficando sem jeito. Levei minhas mãos até o meio de minhas pernas e comecei a me tocar ali mesmo. Ele percebeu todo o movimento e não dizia uma palavra. Perguntei se queria parar o carro e me comer ali mesmo. De repente, passei para o banco da frente, esfregando toda a minha bunda em seu ombro direito. Senti até um pouco de sua barba encostar em minhas nádegas, mas ele continuava imóvel ali, cumprindo seu papel. Pedi que colocasse a mão dele em minhas pernas. Ele rompeu o silêncio apenas para falar um seco e sonoro:
— Não.
E eu fiquei ali, ardendo em desejos. Disse para ele voltar, que eu não precisava mais ir ao destino que tinha falado. Que ele poderia me levar de volta para casa. Assim ele o fez. Pegou o primeiro retorno à frente e voltei para casa.
Nunca mais vi Pedro.
A não ser nos meus sonhos, onde ele me come com desejo. Casei-me com Carlos Augusto cinco meses depois da recusa de Pedro em me comer.
Hoje tenho um filho de dois anos, um marido que me compra o mundo, uma família que acha que sou a pessoa mais sortuda do mundo.
E agora estou aqui, em frente a essa mulher que quer me ajudar de alguma forma.
— Clarice, o nosso tempo acabou. Você não vai falar nada mesmo?
— Não.



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