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Quando as Árvores Repetem Meu Nome


Os peitos e a fumaça
Quando as Árvores Repetem Meu Nome

 

Quando as Árvores Repetem Meu Nome

Conto de Jerusa Furbino


Voltei para enterrar meu pai e encontrei a cidade menor do que lembrava. Como se, na minha ausência, tivesse encolhido para caber na dor que deixei aqui.


O ônibus parou onde sempre parou, bem em frente ao Coreto. Que agora tá desbotado, encardido e vazio, como tudo por aqui. A praça ainda tem os mesmos bancos de cimento rachado, e o mesmo vendedor de pipoca _ ou outro igualzinho, vai saber. Só os pardais parecem ter se multiplicado, atrevidos.


A casa do meu pai continua de pé, teimosa. Enfeitada com samambaia na varanda e rede arriada no canto, como se ele fosse aparecer a qualquer hora com um cafezinho aguado e uma bronca pronta:


- “Tá magro demais, João.”


Entro pela cozinha, como sempre fiz. O cheiro é o mesmo: café passado demais, pano de prato úmido, e aquele fundinho de coisa guardada com mágoa.


No dia seguinte ao enterro cerimônia simples, choro contido, pão de queijo requentado fui dar uma volta no matinho atrás da casa. A gente chamava de “bosque”, mas era só um punhadinho de árvores tortas, cipó crescido e grilo que cantava demais.


Entrei por costume. Pé ante pé, como quem não quer acordar o passado.


E aí ouvi.


“João...”


Baixinho. Como vento atravessando folhinha nova. Mas era meu nome. Com o mesmo tom que escutei quando era menino, escondido atrás do tronco do jatobá, tentando não chorar. Na época, achei que era só minha cabeça. Agora, fiquei na dúvida se era saudade...Ou puxão de orelha do além.


Continuei andando. As árvores, que nunca foram de conversa, começaram a cochichar.“Joãozinho...”Com esse ‘zinho’ que em Minas carrega o peso leve do amor.

Lembrei do dia em que fugi pra esse mesmo mato, depois de ter derrubado sem querer a prateleira com os copos da vó. Meu pai me achou ali, miúdo de medo, e em vez de brigar, só disse:


- “Homem que quebra copo de estimação tem que aprender a colar com paciência.”


Na lembrança, ele me dá o colo. Mas sinto que tem algo errado. O cheiro de suor é mais forte. O silêncio, mais duro. Ele sussurra no meu ouvido:


“Não fala pra sua mãe.”


Acordei suando, mesmo estando acordado.


Acho que foi aí que entendi. As árvores não estavam só chamando meu nome. Estavam querendo que eu escutasse o que escondi até de mim.


Naquela noite, dormi no quartinho dos fundos, onde as telhas fazem mais barulho que chuva. A cama ainda tinha o colchão de molas antigas, aquele que fazia “nhec” toda vez que você pensava em se mexer.


Deitei com um cobertor de florzinha que devia ter sido da minha mãe. Encolhido ali, parecia que era eu que tinha morrido e voltado, sem ninguém ter notado.


A casa respirava, lenta, com aquele suspiro de coisa velha que guarda segredo.


Sonhei com o bosque. Claro. Mas nesse sonho, eu era criança outra vez _ calça curta, joelho esfolado, medo nos olhos. Estava sentado num toco de árvore, comendo goiaba direto da mão da minha mãe. Ela sorria. Mas era um sorriso atravessado. Me olhava com pena.


- “Não escuta, não, Joãozinho. Essas árvores têm língua comprida.”


Quando acordei, era quase manhã. E lá estavam elas, as tais árvores, lá fora, balançando devagarinho, como quem balança segredo no berço.


Tomei o café preto demais da casa, com o pão murcho do armário. Peguei a chave do porão. Finalmente, sozinho, eu poderei mexer nas caixas lacradas do porão.


Lá embaixo, o mofo me recebeu de braços abertos. Tinha tudo quanto é tralha: armário velho, ferramentas, caixas com nome da minha mãe escrito com letra bonita.


E então achei.


Um caderninho.


Na capa: “João - para quando for grande.”


As mãos tremiam. Ou o mundo. Vai saber.


Abri. Era a letra da minha mãe, sim. Miúda, redonda, cheia de laços como quem tenta amaciar a dor na escrita.


“Filho, se você encontrou este caderno, é porque cresceu o suficiente. Eu tentei contar. Mas seu pai dizia que menino feliz não precisava saber de tudo. Só que tem coisas que não se desinventam. E tem silêncios que apodrecem dentro da gente.”


Fechei o caderno. Fui lá fora. As árvores já esperavam.

- “João…”

- “Joãozinho…”

- “João, lembra…”


Era quase doce. Quase.


Voltei pro bosque, como se voltasse pra dentro de mim. Sentei no mesmo lugar onde costumava me esconder. As folhas fizeram um redemoinho ao meu redor, e juro, senti como se o tempo tivesse dado um passinho pra trás.


A voz do meu pai veio, seca como galho quebrando:


- “Homem que fala demais perde o respeito.”


E de repente, lembrei.


Eu com sete anos. Chorando, no escuro. Ele dizendo pra eu engolir o choro. Que menino não grita. Que menino obedece.


Lembrei da vez que cortei o pé e sangrou tanto que fiquei tonto. E ele disse:


- “Isso é só o mundo entrando em você, aprende.”


Subi de volta pra sala, ainda com o caderninho na mão. Ia sentar pra reler, mas bati a canela naquela maldita mesinha de centro _ aquela mesma, de vidro lascado, que ninguém nunca teve coragem de jogar fora.


O palavrão veio automático. O joelho doeu. E junto com a dor, a Bíblia caiu da prateleira.

Abriu sozinha, no meio, como se tivesse pressa.


Lá dentro, entre as páginas de Salmos, um envelope amarelecido, dobrado com carinho e esquecimento.


Meu nome escrito com a letra do velho. Letra de homem que aprendeu a escrever tarde: firme, mas sem floreio.


"João – abrir só quando eu não estiver mais por aqui."


Sentei devagar. Abri mais devagar ainda.


O papel cheirava a coisa guardada com medo.


"Filho,Se você tá lendo isso, é porque a verdade me escapou da boca antes de eu conseguir te contar. Eu te criei como pude. E com amor, mesmo sendo um amor torto, de quem não sabia ser pai. Você é filho da sua mãe, sim. Mas não de mim.O sangue que corre em você vem do irmão dela. Eles… Foi coisa que não devia ter sido. Um amor proibido, doído, escondido demais. Ela ficou ruim depois que ele se matou. Nunca mais foi ela. E quando você fez dez anos, e ela já não sabia mais seu nome, a gente achou melhor te mandar pro internato. Pra te proteger. Pra te afastar do escuro que ficou aqui. Eu te amei como se fosse meu, mesmo sem ser. Me perdoa se fui duro demais. Era o único jeito que eu sabia."

Assinado: "Tonico. Seu pai de mentira, mas de verdade também."


Fechei os olhos. Respirei fundo.


Era como se a casa inteira tivesse soltado um suspiro velho. Um alívio triste.


Levantei, devagar, e fui lá fora. O bosque me chamava de novo.


As árvores já sabiam, claro.


Elas sempre souberam.


Sentei sob o jatobá.


Encostei a cabeça no tronco e deixei as vozes me embalarem.


“Joãozinho…”

“Menino do mato…”

“Filho de quem não devia ter sido…”


As folhas farfalhavam em coro.


E eu senti, no fundo do peito, que alguma parte de mim se desencaixava — como uma porta que abre depois de anos emperrada.


Chorei sem vergonha, pela primeira vez em muito tempo.


Chorei pela mãe perdida, pelo pai que era e não era, pelo tio que nunca conheci, mas que, no fim, me deu metade da alma.


Chorei pelo menino que fui mandado embora com uma mala pequena e um coração desabando.


Quando o choro passou, ficou só o silêncio.


E no silêncio, uma paz esquisita - como se, agora, as árvores não precisassem mais repetir meu nome.


Elas me reconheciam.


E eu também.

 

 

 

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JERUSA ALVES FURBINO DE FIGUEIREDO
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