Língua
- Jerusa Furbino
- 20 de nov. de 2024
- 3 min de leitura

Hoje, ao comer um pedaço de panetone da confeitaria da minha família, a vitamina de morango com bananas tomou-se de uma acidez em minha língua. Gostei da sensação cítrica envolvendo meu paladar e entrei em estado de contemplação da sensação provocada.
Como a língua é um órgão perfeito! — exclamei em meus devaneios matinais, me preparando para o início da minha rotina apertada, agora como motorista de aplicativo e escritora nas horas mais cheias do dia.
Ainda fiquei a me indagar se a língua seria mesmo um órgão. Até agora, ao iniciar esta escrita, ainda não fui ao Google pesquisar. Acho que vou deixar essa pesquisa para mais tarde ou abrir uma aba enquanto escrevo.
Meus pensamentos me atravessam na escrita como o doce do panetone atravessou o doce da vitamina de morangos, tornando-a ácida, com um leve toque de azedo. Isso me remeteu ao gosto do limão com pão de queijo, que tanto adoro. Gosto do azedo do limão invadindo minhas papilas gustativas.
O doce do açúcar do panetone anulou o doce natural das frutas batidas com leite. A indústria do doce artificial se sobrepondo ao doce da criação divina. Me pego debatendo agora sobre as sobreposições e hierarquias divinas x humanas, numa lógica sem pé nem cabeça. Espanto logo esse pensamento invasivo e sem sentido e volto à minha sensação de prazer única. A cada mordida no doce panetone, mais cítrica ficava minha vitamina. Acho que, de agora em diante, vou pingar gotas de limão na vitamina. Deve trazer essa mesma sensação.
A língua é um órgão de prazer máximo; eu sempre desconfiei disso. Eu gosto do gosto e das sensações que ela faz meu cérebro perceber. Me sinto sempre presa nessa fase oral das experimentações. Freud não me daria alta... ou me daria? Talvez a boca, a língua, o prazer, o desejo, toda essa latência, sejam nossa maior potência de vida.
Começamos a conhecer a vida pela língua: primeiro somos amamentados, leite morno das tetas de nossas mães; depois vamos lambendo tudo ao nosso alcance — desde nossos pezinhos, mãos e brinquedos. Absolutamente tudo passa por nossa boca, e a língua é a responsável por nossas primeiras reações de prazer ou nojo.
Depois, aprendemos a falar, e a língua não para, mesmo sendo presa.
Depois, vem o beijo. O gosto da saliva alheia se misturando à sua... Conhecemos o amor por meio da língua. O amor nasce na língua, já pensou nisso? Não tem essa história de coração. Beijo encaixado é amor gostoso. Beijo ruim não faz nascer paixão; a língua rejeita.
O panetone estava bom, mas hoje ele mudou o gosto da minha vitamina para melhor. Fiquei até com dó de escovar os dentes, mas o fiz, porque gosto de uma boca limpa para começar o dia.
Agora estou com o gosto da pasta de dentes. Fui trabalhar pensando nesses cinco minutos de prazer e divagações. Almocei — hoje é feriado. Dia da Consciência Negra. Primeira vez feriado nacional: um marco para uma luta tão importante, que tem na palavra a resistência. Palavra que nasce da língua, essa mesma língua que me fez divagar em prazer por cinco minutos pela manhã.
Desculpe-me se te fiz ler essa história de prazer da minha língua nesta manhã, mas é que realmente foi bom para mim. Estou aprendendo a valorizar cada sensação de prazer. Ser feliz está nos detalhes...
Ah! Pesquisei no Google: a língua realmente é um órgão. Minha gaveta de memória das aulas de biologia estava certa, desde o princípio.
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