Memória de Segunda Mão
- Jerusa Furbino
- 12 de ago.
- 3 min de leitura

Memória de Segunda Mão – conto de Jerusa Furbino
Começou com um rosto que não era meu.
A mulher ruiva.
Não sei de onde veio a imagem, mas ela estava ali, inteira, quando abri os olhos.
Não era lembrança nem sonho, era mais como um anúncio invasivo projetado direto no fundo da minha mente.
Pele clara demais para o contraste do cabelo. Olhos cinza, mas talvez verdes. Pequenas variações cada vez que piscava.
Eu não conheço mulheres ruivas. Não falo francês. E ainda assim, a voz dela estava na minha garganta:
-Je t’ai prévenue.
O cheiro de café queimado se infiltrou pela cena como neblina. Eu nunca gostei de café. Nunca tomei café. Mas naquele instante sabia que o dela tinha três colheres de açúcar e uma pitada de culpa.
Acordei com gosto de infância na boca. Não a minha, mas de alguém.
Sou analista de dados na FORGET S/A. A frase impressa nos manuais diz: Interface Certificada para Adequação Emocional - Risco Controlado (até o arrependimento).
Parece técnica, mas é só outra forma de dizer: esqueça, e pague para não se lembrar que esqueceu.
Lá, a gente manipula Pacotes de Memória em Estado Pendente (PMEPs). Processamos Padrões de Latência Emocional (PLEs) e corrigimos Interfaces com Tolerância Zero. Para o público, tudo isso soa como cura. Por dentro, é apenas descarte qualificado.
Na FORGET, lembrar demais é quase uma infração. “Foco no presente” é um mantra, e curiosidade excessiva pode levar a uma Reprogramação Parcial de Consenso (RPC).
Nas últimas semanas, comecei a sentir o peso das coisas que não vivi. Uma vertigem seca ao ver vermelho ferrugem. Um arrepio diante de túneis. Taquicardia sem causa.
Sensações que não pareciam minhas. Mas estavam dentro de mim.
Um dia, numa reunião, o supervisor comentou como se fosse óbvio:
- “Memórias não se apagam; elas se deslocam. Quando a Integração Zero falha, migramos fragmentos para outras lembranças, onde parasitam gestos alheios. Chamamos isso de resíduos migratórios.”
Sorri por dentro. Claro, “resíduos”. Nunca ouvi dizer que os resíduos podem virar invasão domiciliar.
Mas isso nunca acontecia com planilhas. E era isso que eu analisava: dados frios, sem imagens, sem sons, sem ganchos emocionais. Nada que devesse colar.
Mesmo assim, me pegava chorando sem motivo. Ou lembrando de uma música que nunca ouvi.
Foi numa sexta-feira que algo real escapou do protocolo: um PMEP não filtrado caiu direto na minha fila. Imagem borrada. Uma mesa de madeira, luz fraca, moldura na parede.
Ampliei. A mulher ruiva. Exatamente como no sonho. Mas com olhos ligeiramente diferentes. E, atrás dela, na moldura, uma foto: eu. Sorrindo. De mãos dadas com ela. A legenda dizia: Clara.
Clara. Não Maria.
Continuei rastreando o PMEP. O endereço me levou a um nó fantasma fora do Protocolo de Memória Oficial (PMO), mas rodando sob a arquitetura da empresa. Como uma lembrança reprimida hospedada na sombra.
Entrei.
O lugar se chamava Coração de Vidro. Não era um espaço, era um fluxo. Um mercado paralelo de experiências ilegais, memórias remixadas, vidas inteiras revendidas.
E ela estava lá. Não só nos meus arquivos: em dezenas de outros. Sempre ligeiramente alterada: cabelo mais curto, cicatriz nova, sorriso que não reconhecia. Era como se fosse um molde, adaptado ao gosto de cada comprador.
Algumas sessões estavam bloqueadas com tarjas pretas:
Afetos não autorizados. Intimidades de risco. Padrões Emocionais Instáveis (PEIs).
Cliquei nas restritas primeiro.
Foi assim que encontrei meu rosto, mas não meu nome. Às vezes Clara, às vezes C. D., às vezes apenas “Sem Registro”. Vídeos me mostravam chorando, rindo, beijando a mulher ruiva sob uma árvore que nunca vi, mas que me deu saudade.
O arquivo mais antigo era um Bloco de Armazenamento Pessoal (BAP) datado de cinco anos atrás. Trancado.
Motivo: Exclusão Voluntária.
Autorizada por: Clara D.
Eu.
Desde então, meu nome começou a escorregar. Nos pensamentos mais silenciosos, eu já me chamava Clara.
Clara amava vinho branco doce. Clara escrevia poesias para desconhecidos. Clara chorava ouvindo Chopin.
Eu não bebo. Não escrevo. Nunca ouvi Chopin sem frieza.
Mas sentia tudo como se fosse meu.
Tentei quebrar o bloqueio do BAP. Não consegui. Só restou um resíduo de áudio: Chuva contra vidro e a voz dela:
-Je t’ai prévenue.
Não sei o que respondi.
Hoje, estou no sétimo andar da FORGET, diante da tela de autorização.
Nome do paciente: CLARA D.
Motivo da exclusão: Proteção Ativada
Deseja rever sua última solicitação?
☐ Sim
☐ Não
Meus dedos se aproximam.
Então sinto o calor da xícara. Ela não estava assim antes. O café parece ter acabado de sair da cafeteira. Mesmo estando ali na minha mesa há horas. Seguro a alça, mas não bebo. O cheiro é o mesmo do primeiro sonho, o gosto que não sei de quem é também.
E fico ali, entre o clique e o café, sem saber qual dos dois me devolveria para ela.
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