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Rascunhos que Odeio: não leia


Os peitos e a fumaça
Rascunhos que Odeio: não leia

 

 

Rascunhos que Odeio: não leia

                           Conto de Jerusa Furbino


A primeira mensagem chegou numa terça-feira.


A primeira mensagem não chegou - ela já estava escrita antes mesmo de Corina abri-la.


Era uma terça qualquer. O tipo de dia que parece não ter peso próprio, como se fosse apenas uma sobra de segunda-feira arrastada até a noite. Na cozinha, a chaleira velha gemia no fogo, mas ela não lembrava de tê-la acendido. O relógio da parede marcava três horas, embora a claridade atrás da cortina fosse de manhã.


Corina Salvador estava acostumada a essas incoerências do cotidiano: esquecer se almoçou, se tomou banho, se falou em voz alta ou só pensou. Mas aquilo era diferente.


O notebook repousava sobre a mesa.


Velho conhecido, fiel, lento como um coração cansado. As teclas estavam gastas, algumas sem letras visíveis, mas Corina já não precisava delas. Seus dedos sabiam de cor o caminho. Nunca tivera coragem de trocar a máquina por nada: confiava nela como se confia no Antônio, seu amigo de infância, com seus defeitos previsíveis.


E foi nele que apareceu, de repente, no bloco de notas vazio, a frase que ela jura não ter digitado:


Corina, não vá à cafeteria hoje.


Ela encarou a tela como quem encara um animal desconhecido na beira da estrada. Chegou a esticar a mão para desligar o aparelho, mas parou. Respirou. Esperou alguns segundos.


Abriu de novo.


A frase havia mudado:


Você sempre vai, mesmo quando digo para não ir.


Corina piscou devagar, deixando o absurdo se infiltrar sem pressa. Sentiu o peso da sala: o ar parado, o som abafado do trânsito distante, a chaleira ainda gemendo na cozinha como se fizesse parte da mesma frase.


E então riu. Um riso curto, oco, sem humor, daqueles que escapam quando a mente já não encontra categoria possível para o que vê. O riso de quem percebe, pela primeira vez, que alguém já narrou sua vida antes dela vivê-la.

 

 

[nota à margem]

(o narrador se desculpa: não era para começar assim. mas ela insiste em desviar. se puder, leitor, considere este início apenas um rascunho.)

 

 

A cafeteria ficava a duas quadras.

Ou três.

Ou nenhuma.

Depende da versão.


Às vezes era pequena, apertada, mesas de metal enferrujado e toalhas manchadas.Noutras, ampla, iluminada, madeira clara refletindo a luz de janelas que talvez não existissem.Mas em todas as versões havia garçonetes chamadas Júlia.


Sempre Júlia. Mudava o rosto, mudava o cabelo, mudava até a voz. Mas o nome permanecia.

Corina bebia o café com a mesma indiferença de sempre. Não tinha gosto. Era apenas quente. Um calor que desaparecia antes de alcançar o corpo.


Na saída, ele apareceu.

Chamava-se Lucas. Ou Ricardo. Ou apenas se apresentava como Crítico Literário. O rosto variava pouco, mas o sorriso era idêntico: largo, satisfeito, como se soubesse mais do que dizia.


- Você é Corina Dias, correto?


Ela suspirou, exausta. Era sempre assim. Sempre começava desse modo, como se a cena estivesse presa num roteiro repetido.

 

 

Naquela noite, voltou ao notebook. O teclado apagado a recebia como sempre: um terreno irregular, mas conhecido.


Corina passou a mão por cima das teclas como quem acaricia um animal velho. O arquivo rascunhos que odeio estava aberto. Nenhum clique, nenhuma senha. O texto surgia sozinho, linha por linha, como se o teclado se lembrasse de uma digitação que ela nunca fizera:


Ela ouviu a própria voz pedindo para não ir. Foi mesmo assim. E então a história reiniciou.

Samantha respirou fundo. Os dedos, acostumados à lentidão da máquina, agora corriam duros, raivosos:


NÃO. DESSA VEZ NÃO.


Mas as palavras começaram a desaparecer, uma a uma, engolidas pela própria tela. Era como se o notebook, cúmplice de tantos anos, recusasse a insubordinação.

Sobrou apenas:


Ela acha que pode escrever errado.


[nota riscada do narrador]

Se ela continuar, vou precisar reiniciar o conto. Se ela continuar, talvez eu precise reiniciar também o leitor.

 

No dia seguinte, Lucas já estava lá. Sentado antes dela chegar. O gravador alinhado na mesa. O sorriso colado ao rosto. Os olhos, vazios.


 - Você nunca segue o caminho, Corina.


Ela se recostou, braços cruzados. O silêncio se estendeu. O som dos talheres da cafeteria parecia distante demais, como se viesse de outro andar.


- Qual caminho? - perguntou, seca.


- O da história.


O ar parecia mais pesado.


Corina demorou a responder, como quem mede as consequências de cada sílaba.


- E se eu quiser inventar?


Lucas não piscou. Não respirou. Só disse:


- Então eu apareço.

 

O celular vibrou. Mas a tela que se acendeu não foi a dele. Foi a do notebook. O Word abriu sozinho, sem som de teclas, exibindo frases em letras duras, alinhadas como uma sentença já julgada:


Não confie nele.

Não confie em mim.

Não confie em você.


As Júlias pararam de sorrir - congeladas, como bonecas esquecidas no meio de uma vitrine. A cafeteria tremeu. As paredes pareciam de papelão.


Lucas inclinou-se, voz calma demais:


- Se você sair agora, tudo apaga.


Corina respirou fundo. Olhou de relance o notebook. O mesmo teclado gasto que conhecia de cor agora escrevia sem precisar de suas mãos. A traição do velho aliado era pior que a ameaça de Lucas.


Descruzou os braços.


- Melhor assim.

 

Ela se levantou. A cadeira caiu atrás dela, lenta demais, como se o tempo tivesse engrossado. Deu um passo em direção à porta.

Na tela do notebook, as frases começaram a se escrever em desespero, como se alguém digitasse sem fôlego:


Se ela atravessar a saída, o conto termina aqui.

Se ela atravessar a saída, o conto termina aqui.

Se ela atravessar a saída, o conto termina aqui.

Se ela atravessar a saída, o conto termina aqui.

Se ela atravessar a saída, o conto termina aqui.

Se ela atravessar a saída, o conto termina aqu

Se ela atravessar a saíd

Se ela atravess

Se el

S.


Corina parou diante da porta. O silêncio atrás dela era absoluto - como se todas as vozes, até mesmo do narrador, tivessem sido riscadas. O cursor piscava rápido, aflito.

Ela sorriu. Empurrou a porta.


A claridade do lado de fora não era sol, nem lâmpada. Era branco puro, sem sombra.


O texto parou. Cursor piscando. Vazio.

 

[última nota marginal]

(não há final. só um erro de escrita. mas, talvez seja exatamente isso que ela queria.)

 

 
 
 

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