Rascunhos que Odeio: não leia
- Jerusa Furbino
- 23 de ago.
- 4 min de leitura

Rascunhos que Odeio: não leia
Conto de Jerusa Furbino
A primeira mensagem chegou numa terça-feira.
A primeira mensagem não chegou - ela já estava escrita antes mesmo de Corina abri-la.
Era uma terça qualquer. O tipo de dia que parece não ter peso próprio, como se fosse apenas uma sobra de segunda-feira arrastada até a noite. Na cozinha, a chaleira velha gemia no fogo, mas ela não lembrava de tê-la acendido. O relógio da parede marcava três horas, embora a claridade atrás da cortina fosse de manhã.
Corina Salvador estava acostumada a essas incoerências do cotidiano: esquecer se almoçou, se tomou banho, se falou em voz alta ou só pensou. Mas aquilo era diferente.
O notebook repousava sobre a mesa.
Velho conhecido, fiel, lento como um coração cansado. As teclas estavam gastas, algumas sem letras visíveis, mas Corina já não precisava delas. Seus dedos sabiam de cor o caminho. Nunca tivera coragem de trocar a máquina por nada: confiava nela como se confia no Antônio, seu amigo de infância, com seus defeitos previsíveis.
E foi nele que apareceu, de repente, no bloco de notas vazio, a frase que ela jura não ter digitado:
Corina, não vá à cafeteria hoje.
Ela encarou a tela como quem encara um animal desconhecido na beira da estrada. Chegou a esticar a mão para desligar o aparelho, mas parou. Respirou. Esperou alguns segundos.
Abriu de novo.
A frase havia mudado:
Você sempre vai, mesmo quando digo para não ir.
Corina piscou devagar, deixando o absurdo se infiltrar sem pressa. Sentiu o peso da sala: o ar parado, o som abafado do trânsito distante, a chaleira ainda gemendo na cozinha como se fizesse parte da mesma frase.
E então riu. Um riso curto, oco, sem humor, daqueles que escapam quando a mente já não encontra categoria possível para o que vê. O riso de quem percebe, pela primeira vez, que alguém já narrou sua vida antes dela vivê-la.
[nota à margem]
(o narrador se desculpa: não era para começar assim. mas ela insiste em desviar. se puder, leitor, considere este início apenas um rascunho.)
A cafeteria ficava a duas quadras.
Ou três.
Ou nenhuma.
Depende da versão.
Às vezes era pequena, apertada, mesas de metal enferrujado e toalhas manchadas.Noutras, ampla, iluminada, madeira clara refletindo a luz de janelas que talvez não existissem.Mas em todas as versões havia garçonetes chamadas Júlia.
Sempre Júlia. Mudava o rosto, mudava o cabelo, mudava até a voz. Mas o nome permanecia.
Corina bebia o café com a mesma indiferença de sempre. Não tinha gosto. Era apenas quente. Um calor que desaparecia antes de alcançar o corpo.
Na saída, ele apareceu.
Chamava-se Lucas. Ou Ricardo. Ou apenas se apresentava como Crítico Literário. O rosto variava pouco, mas o sorriso era idêntico: largo, satisfeito, como se soubesse mais do que dizia.
- Você é Corina Dias, correto?
Ela suspirou, exausta. Era sempre assim. Sempre começava desse modo, como se a cena estivesse presa num roteiro repetido.
Naquela noite, voltou ao notebook. O teclado apagado a recebia como sempre: um terreno irregular, mas conhecido.
Corina passou a mão por cima das teclas como quem acaricia um animal velho. O arquivo rascunhos que odeio estava aberto. Nenhum clique, nenhuma senha. O texto surgia sozinho, linha por linha, como se o teclado se lembrasse de uma digitação que ela nunca fizera:
Ela ouviu a própria voz pedindo para não ir. Foi mesmo assim. E então a história reiniciou.
Samantha respirou fundo. Os dedos, acostumados à lentidão da máquina, agora corriam duros, raivosos:
NÃO. DESSA VEZ NÃO.
Mas as palavras começaram a desaparecer, uma a uma, engolidas pela própria tela. Era como se o notebook, cúmplice de tantos anos, recusasse a insubordinação.
Sobrou apenas:
Ela acha que pode escrever errado.
[nota riscada do narrador]
Se ela continuar, vou precisar reiniciar o conto. Se ela continuar, talvez eu precise reiniciar também o leitor.
No dia seguinte, Lucas já estava lá. Sentado antes dela chegar. O gravador alinhado na mesa. O sorriso colado ao rosto. Os olhos, vazios.
- Você nunca segue o caminho, Corina.
Ela se recostou, braços cruzados. O silêncio se estendeu. O som dos talheres da cafeteria parecia distante demais, como se viesse de outro andar.
- Qual caminho? - perguntou, seca.
- O da história.
O ar parecia mais pesado.
Corina demorou a responder, como quem mede as consequências de cada sílaba.
- E se eu quiser inventar?
Lucas não piscou. Não respirou. Só disse:
- Então eu apareço.
O celular vibrou. Mas a tela que se acendeu não foi a dele. Foi a do notebook. O Word abriu sozinho, sem som de teclas, exibindo frases em letras duras, alinhadas como uma sentença já julgada:
Não confie nele.
Não confie em mim.
Não confie em você.
As Júlias pararam de sorrir - congeladas, como bonecas esquecidas no meio de uma vitrine. A cafeteria tremeu. As paredes pareciam de papelão.
Lucas inclinou-se, voz calma demais:
- Se você sair agora, tudo apaga.
Corina respirou fundo. Olhou de relance o notebook. O mesmo teclado gasto que conhecia de cor agora escrevia sem precisar de suas mãos. A traição do velho aliado era pior que a ameaça de Lucas.
Descruzou os braços.
- Melhor assim.
Ela se levantou. A cadeira caiu atrás dela, lenta demais, como se o tempo tivesse engrossado. Deu um passo em direção à porta.
Na tela do notebook, as frases começaram a se escrever em desespero, como se alguém digitasse sem fôlego:
Se ela atravessar a saída, o conto termina aqui.
Se ela atravessar a saída, o conto termina aqui.
Se ela atravessar a saída, o conto termina aqui.
Se ela atravessar a saída, o conto termina aqui.
Se ela atravessar a saída, o conto termina aqui.
Se ela atravessar a saída, o conto termina aqu
Se ela atravessar a saíd
Se ela atravess
Se el
S.
Corina parou diante da porta. O silêncio atrás dela era absoluto - como se todas as vozes, até mesmo do narrador, tivessem sido riscadas. O cursor piscava rápido, aflito.
Ela sorriu. Empurrou a porta.
A claridade do lado de fora não era sol, nem lâmpada. Era branco puro, sem sombra.
O texto parou. Cursor piscando. Vazio.
[última nota marginal]
(não há final. só um erro de escrita. mas, talvez seja exatamente isso que ela queria.)
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